Uma viagem pelo mercado das bruxas: ritos, yatiris e contrastes

Última atualização: Outubro 24, 2025
  • O mercado das bruxas de La Paz entrelaça turismo e religiosidade andina com yatiris, mesas rituais e oferendas à Pachamama.
  • Amuletos, poções, incensos, sullus e folhas de coca são vendidos, com leituras e limpezas que orientam as decisões diárias.
  • Reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial, o mercado enfrenta controles para conservação da vida selvagem e riscos à saúde.
  • Na Espanha, Talavera organiza a Rota do Dia dos Mortos e o II Mercado de Bruxaria e Magia com teatro, tarô e artesanato temático.

passeio pelo misterioso mercado das bruxas

No coração de La Paz, a mais de 3.600 metros acima do nível do mar, desenrola-se um cenário que parece saído de outra época: ruas de paralelepípedos, fumaça de incenso e, entre barracas, a promessa de remédios, amuletos e orações que conectam o humano com o sagrado. Ali, em uma série de ruas estreitas perto da Basílica de São Francisco, encontra-se o que muitos conhecem como o mercado das bruxas, um espaço onde coexistem turismo, tradição e uma religiosidade andina que se reinventa continuamente. Este passeio pelo misterioso mercado das bruxas Não é apenas uma experiência visual: é uma jornada por rituais e símbolos que resistem ao teste do tempo.

Não estamos diante de um cenário exótico, mas sim de um território vivo. De um lado, mochilas e câmeras de visitantes curiosos; do outro, moradores locais que vêm secretamente consultar os chamados yatiris, "aqueles que sabem", curandeiros que leem folhas de coca, preparam oferendas e realizam purificações. Entre a Rua Linares e o bairro El RosarioMercearias coexistem com oficinas de artesanato e barracas que, sem alarde, preservam a memória ritual dos Andes. Visitas guiadas abundam — muitas vezes terminando no Museu da Coca —, mas a essência dessas ruas não pode ser totalmente capturada em uma visita rápida.

Um bairro que mistura devoção, comércio e turismo

O conjunto de ruas perto da Basílica de São Francisco se transforma em um circuito onde tudo parece ter seu lugar: albergues, lojas, restaurantes e pequenas lojas, tudo interligado. As barracas estão dispostas em zigue-zague E os visitantes se deixam levar pelo murmúrio de vozes que oferecem feitiços, velas e perfumes que prometem fortuna ou amor. No entanto, por trás da agitação, percebe-se a cadência do sagrado: há olhares discretos, passos deliberados e uma etiqueta não escrita que convida à observação respeitosa.

São oferecidos passeios a pé para ajudar você a entender a história do lugar e sua visão de mundo, guiados por especialistas que explicam os significados e rituais; você pode consultar exemplos de itinerárioMuitos desses passeios terminam no Museu da Coca, onde a planta mais emblemática da região e seu papel ritual são contextualizados. Nem tudo é espetáculo: Vizinhos vagam por essas mesmas ruas diariamente, comprando suprimentos para abençoar uma casa, abrir um negócio ou consertar um relacionamento fracassado. A fronteira entre o cotidiano e o extraordinário aqui não é uma linha; é um fio que se entrelaça a cada passo.

Entre aqueles que circulam discretamente pelo bairro estão os yatiris. Eles não são fáceis de identificar porque não usam uniformes. Muitos carregam chuspas — bolsas tecidas com lã de camelo — com maços de folhas de coca, crucifixos, relíquias e objetos usados ​​em seus rituais. Sua presença é mais intuída do que exibida; eles aparecem, conversam tranquilamente, observam as mercadorias e se esgueiram entre as barracas com a facilidade de quem sempre fez parte da paisagem.

O que está à venda: de amuleto cotidiano a emblema sagrado

O inventário do que é exibido em cobertores e balcões é tão vasto quanto magnético. São vistos crânios decorativos, poções contra mau-olhado e pós da sorte.Também foram encontrados frascos prometendo emprego, maços de plantas medicinais que "curam tudo ou quase tudo", géis de arruda e colônias que supostamente atraem dinheiro. Ao lado deles, encontram-se manteigas que alegam "fazer crescer cabelo", palo de santo (bastões sagrados), incenso em mil aromas e cores, e lã de lhama com usos simbólicos muito específicos.

A coleção se completa com crucifixos, punhais e Virgens Marias e cruzes andinas esculpidas em madeira. Há também pulseiras, colares e brincos adornados com sementes de huayruro — vermelhas e pretas, representando boa sorte —, além de bonecas de açúcar destinadas a "adoçar" as dificuldades do dia a dia. Existem instrumentos tradicionais como maracas, flautas e paus de chuva, além de loções "revigorantes" para a virilidade, velas para atrair amantes, pós para "afastar" a inveja e figuras de cera projetadas para ativar feitiços de amor. A oferta é infinita aos olhos do leigo, mas quem faz um pedido claro sabe exatamente o que escolher e a quem pedir.

Dentre tanta variedade, há dois protagonistas indiscutíveis: a folha de coca e o sullus, ou seja, fetos de lhama, alpaca ou outros animais. A coca é uma oferenda e um oráculo, um veículo de consulta e uma ponte para o divino nas leituras realizadas pelos yatiris. Os Sullus, por outro lado, garantem pagamentos mais substanciais à Mãe Terra; frequentemente fazem parte de mesas rituais mais complexas e caras. Os comerciantes explicam insistentemente que esses fetos provêm de abortos espontâneos, de filhotes que não sobrevivem ao frio da altitude ou que aparecem em matadouros no ventre de suas mães. Um esclarecimento que reflete a impressão causada ao vê-los pendurados em cachos à vista de todos.

Em uma dessas conversas de rua, Marcela — uma vendedora de cabelos tingidos de laranja e sorriso de dentes dourados — profere uma frase que resume tudo: "Aqui você encontra de tudo, filho, absolutamente tudo". A frase soa como um slogan improvisado. E, no entanto, é um fato. Ao lado, garrafinhas e embalagens repletas de mensagens diretas — mais sorte, mais amor, mais dinheiro — convivem com silêncios e gestos que dizem tanto quanto os rótulos. Guias de viagem costumam marcar este lugar como "imperdível", e não faltam recomendações em revistas e canais de viagens que, entre outras rotas pela Bolívia — do centro de La Paz ao Salar de Uyuni — se concentram neste mercado por seu inegável magnetismo.

Agosto e a Mãe Terra: Quando "Ela Abre a Boca"

Se há um mês que simboliza a intensidade ritual, é agosto, a estação da Pachamama. Dizem que então "a Terra abre a boca" e que deve ser "alimentada" com oferendas. Belinda, uma curandeira de El Alto, resume com veemência: "É uma boca aberta; você tem que colocar dinheiro nela", diz ele, referindo-se aos tributos. Cada oferenda é adaptada às necessidades de quem a solicita: amor, trabalho, prosperidade, saúde ou proteção. Não há duas mesas rituais idênticas, embora compartilhem um coração simbólico comum.

As chamadas mesas ou pagamentos de terra são cuidadosamente montadas pelos yatiris. Dentro delas, encontram-se doces em formato de casas ou corações, lã, folhas de coca, resinas aromáticas, frutas, flores, sementes, mel, gordura de camelo e uma coleção heterogênea de "doces" coloridos que representam conceitos como sorte, dinheiro, caminho, paz ou saúde. As mesas mais caras incluem um sullu, e uma vez finalizados, são amarrados com linha ou cordão fino antes de serem queimados. A queima não é apenas um fim ritual: é uma leitura, uma tradução e uma mensagem.

De pé sobre o braseiro, o yatiri observa a direção da fumaça, como a resina crepita e a velocidade com que as chamas devoram os ingredientes. "Deu tudo certo, está lindo", comenta Belinda quando o fogo "fala". Nesse momento, a palavra jallalla é pronunciada, um termo quíchua-aymara que, em sua essência, une esperança, celebração e felicidade. É um pedido e um agradecimento ao mesmo tempo., uma ponte linguística entre a vontade humana e a vontade da terra. Quando tudo acaba, as brasas e as cinzas são enterradas: o ciclo se fecha, e o que foi oferecido retorna ao solo que o sustenta.

O fogo, onipresente, atua como mediador. Consumir, transformar, traduzir: três verbos que, aqui, são a mesma ação. Chamas transformam desejos em sinais que o especialista interpreta para dar recomendações ou alertas. Não há exibicionismo: há um código aprendido com paciência, transmitido de geração em geração, que assume a responsabilidade de "saber nutrir" a vida e "saber curá-la", duas expressões que resumem a dupla sabedoria atribuída a esses guias espirituais andinos.

Yatiris: “aqueles que sabem” e leem o que os outros não veem

Os yatiris não gritam seus nomes. Se você os reconhece, é por pequenos detalhes: o chapéu escuro, a maneira como sentem as folhas de coca, a velocidade com que verificam as barracas. Folhas de coca, cruzes, correntes e relíquias viajam em suas chuspas.; ferramentas para leitura, cura, proteção e aconselhamento. Eles aprenderam com os mais velhos e, em muitos casos, relatam ter sido "chamados" por raios, visões ou sonhos intensos que os guiaram. A comunidade recorre a eles para conversar com seus ancestrais guardiões: os achachilas e awichas, presenças que os guiam, protegem e acompanham na cosmovisão andina.

Além de plantas, raízes e resinas, eles conhecem as "pedras da montanha" e a linguagem dos sonhos. Realizam limpezas para remover obstáculos e curas que combinam orações, defumações e gestos. Sua ferramenta mais conhecida é a folha de coca.: Sobre um cobertor, uma mesa ou no chão, eles espalham as cartas como se estivessem embaralhando e extraem respostas de sua posição, proximidade ou contato. Com essa leitura, eles respondem a perguntas específicas, descrevem possíveis desenvolvimentos futuros e recomendam maneiras de superar obstáculos. Isso não é adivinhação em uma feira; é uma estrutura de significado com suas próprias regras e códigos.

Patrimônio, conhecimento e controvérsias à vista

O valor cultural do mercado foi oficialmente reconhecido em 2019, quando a Prefeitura de La Paz o declarou Patrimônio Cultural Imaterial. Seu status como espaço de conhecimento foi valorizado., um lugar onde oferendas e rituais sintetizam uma visão de mundo disseminada por toda a região andina. No entanto, essa distinção não o isentou de controvérsias. O turismo — impressionado pela abundância de sullus em exposição — convive com denúncias e controles para impedir práticas contrárias à conservação da vida selvagem.

Os vendedores repetem o mesmo argumento toda vez que alguém é surpreendido pelos fetos pendurados: eles vêm de abortos naturais, de bebês que não resistiram ao frio ou de bebês que foram encontrados em matadouros no útero de suas mães. Mas o debate não se limita ao SullusAutoridades encontraram partes ou espécimes de espécies como morcegos, lagartos, patas de raposa e sapos em algumas prateleiras. O risco à saúde e a obrigação de proteger o meio ambiente levaram ao aumento dos controles e da vigilância, na tentativa de manter um equilíbrio entre a salvaguarda de práticas ancestrais e o combate ao tráfico de animais.

A atração do mito: entre o sagrado e o grotesco

Dizem que foram os visitantes estrangeiros que popularizaram o nome "mercado das bruxas". Antes do bairro ficar famoso, chifleras (vendedoras de ervas) já ocupavam esses cantos, oferecendo remédios e conselhos. Com o tempo, os guias turísticos rotularam o lugar como "imperdível"., e o fluxo de curiosos fez o resto. Hoje, lojas de artesanato coexistem com barracas de medicina tradicional, onde você pode comprar uma mesa ritual completa, amuletos para todas as doenças e poções de todos os tipos.

O lugar vive em um paradoxo constante. Para alguns, sua estética pode beirar o grotesco; para muitos outros, é um santuário a céu aberto onde a Mãe Terra é homenageada. "Aqui homenageamos nossa mãe", sussurra um vendedor, sugerindo imediatamente uma tartaruga para acrescentar anos à vida, uma coruja para expandir a sabedoria ou um condor para viagens seguras e boa sorte. Entre os produtos estrela está o "Sabonete Come to Me" — supostamente irresistível para atrair um parceiro — e a famosa loção "7 machos", que os vendedores afirmam, rindo, que "nunca falha". As prateleiras estão repletas de dezenas de frascos: misturas, sabonetes, bálsamos, poções, elixires e misturas com rótulos categóricos.

Além do apelo comercial, o bairro serve como espelho de uma cidade que interage com suas divindades e ao mesmo tempo acolhe aqueles que vêm de fora. O sagrado e o profano andam de mãos dadas Entre nuvens de fumaça e mosaicos coloridos. Para o viajante, a experiência pode parecer um museu sem vitrines; para o devoto, um altar diário ao qual se retorna repetidamente. Essa dualidade, longe de distorcê-la, a mantém viva e a transforma em um limiar entre dois mundos: o dos mitos que perduram e o das câmeras que buscam capturá-los.

Histórias, leituras e visitas guiadas

Aqueles que se aventuram por essas ruas com um guia recebem contexto e história: o que significam as cores dos doces rituais, quando fazer um pagamento, como as mesas são postas e a maneira correta de cumprimentar e fazer o pedido. Muitas rotas terminam no Museu da Coca, onde entendemos por que esta folha é mais do que um símbolo: é alimento ritual, remédio e ferramenta divinatória. Essa mistura de explicação e experiência nos permite ver que, por trás dos jarros e velas, existe uma teia de significados tão complexa quanto coerente.

Fora dos passeios guiados, a atmosfera vibrante do bairro convida você a passear sem pressa. As conversas surgem naturalmente, os conselhos aparecem quando você menos espera e, de repente, um gesto revela mais do que uma longa conversa. A chave é o respeito: pergunte, ouça, aceite que nem tudo está à disposição. Algumas coisas pertencem a quem as vive, e esse limite — que não é uma proibição, mas sim uma precaução — impede que o mercado se torne uma caricatura.

Ecos na Espanha: Talavera e seu fim de semana de mistério

A atração por rituais, histórias e símbolos não é exclusiva dos Andes. Na Espanha, Talavera de la Reina oferece um fim de semana muito especial para quem aprecia o esotérico e o lendário. Noite de Finados e 2º Mercado de Bruxaria e Feitiçaria de São Jerônimo Eles são apresentados como um evento duplo nos dias 31 de outubro e 1º de novembro, em torno da celebração do Dia de Todos os Santos, com atividades que combinam história local, entretenimento e artesanato.

No dia 31 de outubro, às 20h30, uma Rota Especial da Noite de Finados partirá do Centro Cultural Rafael Morales e percorrerá as ruas do Centro Histórico. A Ocultura Talavera coordena o passeio, que desvenda histórias e lendas em cenários reais por toda a cidade. A capacidade é limitada e é necessário registro prévio. É obrigatório, uma fórmula que organiza o passeio e o torna mais intimista. A noite contará com Jesús Ortega, do programa de rádio El Dragón Invisible (Rádio Castilla-La Mancha), como mestre de cerimônias.

O próprio Centro Rafael Morales também abrigará uma exposição dedicada ao mistério, ao terror e aos rituais, complementando o percurso com peças e histórias que expandem o universo simbólico da noite. O primeiro sábado de novembroO Mercado de San Jerónimo realizará uma edição especial focada em bruxaria e feitiçaria, adicionando barracas de magia, espaços esotéricos e vários leitores de tarô às ofertas de artesanato habituais que enchem as ruas mais carismáticas do Centro Histórico.

Haverá apresentações teatrais em vários momentos do dia, contação de histórias de bruxas e venda de amuletos, ervas e doces relacionados ao tema. 2º Mercado de Bruxaria e Feitiçaria de San Jerónimo O evento sediará suas barracas na Plaza San Pedro, na Plaza de San Agustín e na Rua Pescaderías, com a expectativa — segundo a Prefeitura — de repetir o sucesso em termos de público e participação de eventos anteriores. Uma homenagem contemporânea ao mágico que, embora muito diferente do universo andino, revela um interesse compartilhado por histórias que desafiam o visível.

De um lado, um bairro de La Paz declarado Patrimônio Cultural Imaterial por seu papel como santuário de conhecimento e oferendas; do outro, uma cidade castelhana que organiza rotas e mercados temáticos para explorar suas lendas urbanas. Dois olhares para o misterioso que não competem, mas sim se complementam: ambos mostram que o fascínio pelo ritual, pelo símbolo e pela promessa de proteção ainda está muito vivo.

Para quem chega a La Paz, a experiência é menos como um passeio por um mercado e mais como uma lição silenciosa: ingredientes que significam algo, palavras que invocam, mãos que sabem. E para quem visita Talavera, o encanto das histórias noturnas e um mercado que mistura artesanato com tarô, performances e doces com nomes encantadores.

O "misterioso mercado das bruxas" não é um cartão-postal nem um truque turístico; é uma porta entreaberta para uma maneira de entender o mundo em que tudo está conectado: a casa nova que você compra, o emprego que você procura, o amor que você pede, a saúde que você protege. De La Paz a Talavera, os rituais mudam de forma, mas mantêm sua batida essencial: o desejo de falar com o que não é visto para cuidar do que tocamos todos os dias.

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